sábado, 9 de janeiro de 2010

DECADA QUASE PERDIDA

"A sociedade brasileira chega ao fim da primeira década do novo milênio com indicadores de criminalidade ainda muito preocupantes. E, pior do que isso, sem uma definição política clara de como lidar com o problema. A insegurança pública persiste como grave obstáculo consolidaçãoo de nossas instituições democráticas.

O patamar da taxa de homicídios está estabilizado em 26 homicídios por 100 mil habitantes para o país como um todo. Quando analisamos, contudo, as peculiaridades das realidades regionais, identificamos taxas venezuelanas (taxa de homicídios superior a 50 homicídios por 100 mil habitantes) em alguns estados. Alagoas alcanou e vem mantendo a liderança do ranking nacional de homicídios desde 2006, com 80 homicídios por 100 mil habitantes, superando Pernambuco e Espírito Santo. Sua capital, Maceió, com população próxima a 1 milhão de habitantes, registrou pelo menos 900 assassinatos ao ano, entre 2006 e 2008. O estado da Bahia, por sua vez, outra novidade dos últimos anos, apresentando crescimento expressivo das taxas de homicídios, principalmente na Regio Metropolitana de Salvador. Merecem menção, ainda, algumas regiões metropolitanas, outrora pacíficas, e que estão sofrendo com a deterioração da ordem pública, quais sejam, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Manaus e Belém.

As evidências disponíveis reforçam o diagnóstico do perfil predominante das vítimas, que não mudou ao longo da década: homens jovens, entre 15 e 25 anos, de cor negra e residentes na periferia social dos grandes e médios centros urbanos. Além disso, sabemos que os conflitos geradores dos assassinatos persistem, em boa medida, relacionados ao tárfico de drogas. Tenho trabalhado com a hipótese, ainda não confirmada empiricamente, de que a disseminação do crack se constitui em poderoso fator de risco da violência na sociedade brasileira. As características do mercado ilícito do crack tendem a potencializar relações conflitivas, em especial entre comerciantes e consumidores, gerando verdadeiras epidemias de violência.

No que se refere às polticas públicas de controle da criminalidade, continua prevalecendo a racionalidade típica do gerenciamento de crises, a despeito de alguns avanços pontuais aos quais farei referência adiante. As secretarias estaduais de segurança pública, bem como as secretarias estaduais de Justia, persistem gerenciando apenas os problemas imediatos que se lhes manifestam. Planejamentos de médio e longo prazos fundamentados em diagónsticos quantitativos e qualitativos da realidade raramente são formulados. Imaginar mecanismos de monitoramento e avalição de projetos é coisa de outro mundo. A quantidade e a qualidade das equipes técnicas das respectivas secretarias são limitadas, o que explica, em parte, a incapacidade das mesmas de executar em plenitude os recursos financeiros disponibilizados para investimento. Esta, inclusive, tem sido uma justa reclamação da Secretaria Nacional de Segurana Pública junto aos governos estaduais. O dinheiro federal investido na segurança pública vem aumentando desde 2007, contudo, os governos estaduais no conseguem gastá-lo por completo.

O modismo do momento é a presença de delegados federais, da ativa ou aposentados, como secretários de Segurança Pública. Estimativas recentes revelam que em 17 estados brasileiros eles estão ocupando tais cargos. Em momentos anteriores, prevaleceram policiais, procuradores de Justiça, desembargadores e oficiais da reserva do Exército. Subjaz em tais escolhas técnicas a suposição de que o secretário de Segurança Pblica deve ser um erudito do direito penal ou um operacional ou mesmo um mano de piedra. No há evidência de que tal supremacia dos delegados federais tenha implicado ganho de qualidade na gesto das polticas estaduais de controle da criminalidade, salvo os casos de Pernambuco e Espírito Santo. Eles têm feito mais do mesmo, reafirmando o gerenciamento de crises, infelizmente.

No casual, portanto, que a poltica do confronto persista como tática contumaz de publicização da ação governamental no controle do tráfico de drogas em diversos estados. A despeito dos avanços do governo Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, na implantação do promissor projeto Unidade de Policiamento Pacificador (UPP), a polícia carioca continua matando às pencas, alimentando as estatísticas dos autos de resistência. E, infelizmente, o governo da Bahia está se espelhando nesse modelo. O número de mortos em confrontos com a polícia aumentou muito este ano em relaçãoaos anos anteriores, principalmente no auge da crise recente da segurança em Salvador, com ônibus queimados, policiais atacados, entre outros fatos.

No que diz respeito ao sistema prisional, também persistem problemas crônicos. Atingimos 450 mil presos que ocupam 330 mil vagas, ou seja, temos um déficit de 120 mil vagas. A superlotação prisional e a baixa qualidade do atendimento jurídico, educacional e laboral ao preso mantiveram-se relativamente intactas ao longo da década. O que há de novo nesse campo resume-se a duas iniciativas: a proliferação das Apacs (Associações de Proteção aos Condenados), o que é muito bom, e a adoção das PPPs (Parcerias Público-Privadas), o que é promissor.

Perspectivas O diagnóstico desalentador da segurança pblica na sociedade brasileira, apresentado na seção anterior, não pode ofuscar o reconhecimento de experiências exitosas. São pontuais, verdade, mas, sinalizam a possibilidade do sucesso em meio ao fracasso. Três estados brasileiros estão implementando políticas consistentes de segurança pública, com resultados concretos em termos de redução dos indicadores de criminalidade. São eles: Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais.

Desde o segundo governo Mário Covas, em fins da década de 1990, até o ano de 2008, pode-se identificar a implementação de um projeto sério para a segurança pública em São Paulo. Aprimoramento do setor de inteligência da Polcia Civil, investimento maciço no Departamento de Homicídios, contratação de novos policiais militares, adoção do sistema de georreferenciamento do crime, melhoria substantiva da estrutura logística das polícias, ampliação corajosa do número de vagas no sistema prisional, estabelecimento de parcerias com entidades da sociedade civil para o desenvolvimento de projetos de prevenção social da violência foram algumas das ações governamentais que geraram projetos que tiveram continuidade de gestão por oito anos. No casual, portanto, sob meu ponto de vista, que entre 2001 e 2008 a taxa de homicídios no estado tenha sido reduzida em mais de 65% e a taxa de roubos em mais de 30%.

Os bons resultados da poltica de segurana pública em Minas Gerais, desde 2003, na gestão do governador Aécio Neves, so reconhecidos nacionalmente. O programa de integração das polícias tornou-se referência para outros estados, como o caso do Rio de Janeiro e de Pernambuco. Os projetos de prevenção social da criminalidade, como o Fica vivo, Mediaação de conflitos e Acompanhamento de penas alternativas, por sua vez, são considerados exemplares por organismos internacionais. A questão prisional tem sido abordada de forma corajosa, de modo que duplicou-se o número de presos em seis anos, como também foi possível retirar da Polícia Civil a custdia de quase 10 mil presos, algo impensável há 10 anos. A poltica de atendimento ao adolescente infrator também merece destaque pela institucionalização de um modelo de aplicação das medidas socioeducativas que não tem equivalente na realidade nacional. Os níveis de criminalidade violenta em Minas Gerais efetivamente foram reduzidos nesse perodo, não há como negar. Não tenho qualquer constrangimento em afirmar que a experiência mineira deveria se tornar um case a inspirar outros estados que se disponham a melhorar suas condições de segurança pública.

E o estado de Pernambuco teve a humildade de fazê-lo e, não por acaso, está começando a colher os frutos. O governo Eduardo Campos formulou em 2007 a mais abrangente poltica estadual de segurança pública em vigor no Brasil, denominando-a de Pacto pela vida. São mais de 90 projetos que incluem desde o fortalecimento do Departamento de Investigação de Homicídios, passando por investimentos maciços no sistema prisional e culminando na implementação de audacioso programa de preveno social da violência. O Pacto pela vida tem sido implementado com comptência, incorporando ferramentas sofisticadas de monitoramento de projetos sociais. O governador se envolve pessoalmente em todo o processo de gestão, conforme pude testemunhar recentemente. Depois de longo período de crescimento ininterrupto, o estado de Pernambuco já pode comemorar, com a devida parcimônia, a proeza de ter alcançado, desde o fim de 2008, 10 meses consecutivos de redução da taxa de homicídios. E a sociedade pernambucana está considerando o Pacto pela vida como poltica de estado e não mais política de governo.

Encerro o artigo reafirmando uma convicção pessoal que tenho defendido Brasil afora: nenhum indicador social capaz é de explicar os elevados patamares de violência que enfrentamos. Não precisamos esperar que o Brasil se torne, algum dia, um país socialmente justo para então usufruir de padrões civilizados de ordem pública. É possível construirmos uma sociedade mais pacfica e menos violenta nos próximos 10 anos. Desde que sejamos capazes de combinar investimento, planejamento, gestão e articulação de ações repressivas e preventivas. "

Autor: Luis Flavio Sapori coordenador do curso de ciências sociais e do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas.


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