O PORTE DE ARMA DESMUNICIADA E A POSSE DE MUNIÇAO Carla Maia dos Santos - Advogada
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal acaba de enfrentar essa questão novamente, determinando no HC 97.811 o arquivamento de ação penal contra Cláudio Nogueira Azevedo, acusado de porte ilegal de arma. O STF aceitou o pedido de Habeas Corpus de Azevedo porque ele não dispunha de munição para disparar os tiros.
Hodiernamente o Direito Penal continua ainda sendo visto sob duas perspectivas: a legalista (do século XX) e a constitucionalista (do século XXI). O STF, na atualidade, constitui a máxima expressão desta segunda visão. Dentro da Segunda Turma do STF o bloco de resistência do modelo constitucionalista está representado pelos Ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Celso de Mello. São magistrados essencialmente constitucionalistas. Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, tradicionalmente, sempre denotaram tendências legalistas. O que acaba de ser dito resulta mais do que evidente na questão do porte de arma de fogo sem munição. Os legalistas admitem o perigo abstrato. Os constitucionalistas refutam esse modelo de perigo. Para os legalistas o porte de arma sem munição é delito. Para os constitucionalistas o relevante é o perigo concreto.
Fundamentos teóricos da visão constitucionalista: sob a perspectiva do princípio da ofensividade, não existe perigo abstrato em Direito Penal porque todo crime exige um resultado (CP, art. 13), que é o jurídico. Nullum crimen sine iniuria : não há crime sem ofensa (lesão ou perigo concreto de lesão) ao bem jurídico. Essa ofensa configura o que se chama de resultado jurídico. Para que o agente responda penalmente por esse resultado jurídico ele deve ser desvalioso.
O resultado jurídico desvalioso configura, como se vê, um outro requisito do fato materialmente típico e ostenta natureza claramente normativa, porque depende de juízo de valoração do juiz. O resultado jurídico desvalioso preenche, ao lado do juízo de valoração da conduta, o aspecto material da tipicidade. É o segundo juízo de valor exigido pela tipicidade material. Vencida a primeira etapa (valoração da conduta), deve o juiz proceder ao segundo juízo valorativo (do resultado jurídico).
Se as normas penais são, primordialmente, normas de valoração e se a ofensividade é requisito imprescindível no conceito de delito, não há como admitir qualquer fato punível sem ofensa ao bem jurídico, isto é, sem resultado jurídico. De qualquer modo, não basta a afetação do bem jurídico. É preciso que seja desvaliosa.
Tradicionalmente o resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão) achava-se coligado com o conceito de antijuridicidade material. Era estudado, portanto, no âmbito da antijuridicidade. Na atualidade já não se concebe qualquer qualificativo para a antijuridicidade, que é simplesmente a contradição do fato formal e materialmente típico com o Direito. Em conclusão: o conteúdo do que se chamava de antijuridicidade material (a lesão ou o perigo concreto de lesão) foi deslocado para o âmbito da tipicidade.
Não se pode confundir em Direito Penal o resultado, que deve ser utilizado no sentido naturalístico com o desvalor do resultado.
Partindo-se da premissa de que não há delito sem ofensa ao bem jurídico, jamais poderá incidir qualquer sanção penal sem a constatação de um resultado jurídico. Todos os crimes são dotados de resultado jurídico.
Não há crime sem resultado jurídico: se o resultado jurídico - a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem jurídico - é requisito essencial do injusto penal, como aqui se admite (coerentemente com o princípio da necessária ofensividade e o sentido marcadamente valorativo das normas penais), ele deve estar presente, de uma ou de outra forma (explícita ou implicitamente), em todo delito. Essa assertiva, reitere-se, está em perfeita consonância com o art. 13 do CP.
Partindo-se da premissa de que o desvalor do resultado (resultado jurídico) é o fundamento primordial do delito (do injusto penal), não há dúvida que esse Direito Penal (da ofensividade) não se coaduna com o perigo abstrato (que é inconstitucional e inválido dentro do Direito Penal).
Ofensa concreta, transcendental, grave, intolerável, objetivamente imputável e que esteja no âmbito de proteção da norma: a ofensa ou o resultado jurídico penalmente relevante requer o preenchimento de seis exigências. Faltando qualquer uma delas, não há que se falar em fato materialmente típico. A primeira delas reside, justamente, na concretude do resultado (que é incompatível com o perigo abstrato).
Não pode o resultado jurídico ser presumido. Partindo-se da premissa de que o desvalor do resultado (resultado jurídico) é também fundamento inseparável do delito (do injusto penal), não há dúvida que esse Direito Penal (da ofensividade) não se coaduna com o perigo abstrato (que é inconstitucional e inválido dentro do Direito penal). Tendo em vista as graves consequências penais que decorrem para o agente, só é proporcional a incidência delas quando o agente tenha afetado de modo concreto bens jurídicos de terceiros.
No caso da arma desmuniciada (STF, HC 81.057-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence) não há que se falar em delito (de posse ou de porte de arma) porque, sem munição, não conta ela com potencialidade lesiva real. Nesse mesmo sentido confira RHC 90.197-DF, Primeira Turma do STF e, agora, também o HC 97.811 (Segunda Turma do STF).
E ainda, o porte de munição sem arma também não é delito: uma munição isolada, sem arma, é totalmente inofensiva (não reúne nenhuma potencialidade ofensiva). Materialmente, essa conduta não pode ser reputada como delitiva. Considere-se, ademais, que o bem jurídico protegido não é a simples autorização administrativa ou permissão do Estado para portar arma de fogo ou munição. Os bens envolvidos são pessoais e de grande relevância (vida, integridade física, patrimônio etc.).
Também por falta de ofensividade ao bem jurídico o STJ cancelou a Súmula 174 que permitia o aumento de pena no delito de roubo no caso de arma de brinquedo (STJ, REsp 213.054). No mesmo sentido, para o STF, o mero transporte de carvão sem a documentação fiscal, mas com autorização do IBAMA, não constitui delito ambiental (STF, RHC 85.214, rel. Min. Sepúlveda Pertence).
Em todas essas situações não há que se falar em tipo penal. O perigo abstrato, de acordo com essa jurisprudência, não serve, por si só, para fundamentar o injusto penal. Tampouco a realização formal dos requisitos típicos justifica o reconhecimento do delito. Além da tipicidade formal, impõe-se o exame da ofensa ao bem jurídico. Ofensa concreta, não presumida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Acórdão. Porte ilegal de arma sem munição. STF, RHC 81057-São Paulo, informativo do STF n. 385.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislação Penal Especial . 3ª ed., São Paulo:Ed. Saraiva, 2008, p. 371.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria Del Garantismo Penal . Madrid: Editora Trotta, 2000.
GOMES, Luiz Flávio. DONATI, Patricia. Arma sem munição não é crime (diz Segunda Turma do STF) Disponível em http://www.lfg.com.br 21 junho. 2009.
ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General . Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
Fonte: www.jusbrasil.com.br
Fonte: www.jusbrasil.com.br
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